27 outubro 2015

Ser Mulher

Ilustração por Mari Fakih
O primeiro assédio que lembro, na verdade foi na rua, com um grupo de amigas. A gente  devia ter uns 11 anos, treinava handebol, e saia de camiseta e shorts para pegar o ônibus. Entre fiu-fius e gracinhas a gente ia pra casa, de ônibus, a pé, como seria possível. 

Mas o mais escandaloso, ao meu ver, foi um professor de matemática que tentou sair comigo. Eu tinha 16 anos, estava no colégio, ele devia ter uns 40. Era até bonitão, malhado, um tipo OK,  mas lembro que fiquei enojada e confusa. Não saí com ele, mas não denunciei ou contei para ninguém. Apenas passei e evitá-lo. Talvez porque aos 16 a rua já tivesse me ensinado que eu era deliciosa, pernuda, bundão e que isso era "assim mesmo". Talvez porque também foi aos 16 que, enquanto eu corria, indo e voltando na avenida, um cara resolveu bater uma punheta e quando passei novamente por ele disse que era pra mim. Depois daquilo por anos minhas corridas tornaram-se restritas aos parques, com guardas e grades, onde me parecia mais seguro. 

Não me lembro a idade, mas já apertaram meu peito no amontoado do trem, depois daquilo aprendi a andar sempre encostada nas paredes do vagão, a andar de cara fechada na rua enquanto caminho sozinha, a tantas outras coisas. 

E isso não para, pois esses dias, quando fui pegar ônibus, havia um grupo de homens no ponto, talvez conscientes, legais, mas tive medo. Por isso esperei de longe, olhando para trás a cada segundo. Quando o ônibus chegou dei sinal de longe, e corri até o ponto, passando rapidamente por eles.
Pequenas "infrações sem sinal de violência" que toda a mulher passa. Que ao longo de anos me - nos - deixaram escolada. Afinal, começa quando a gente ouve fiu fiu a cada esquina; de shorts, de decote, de vestido longo, de calça, de burca. E na verdade a gente precisaria responder e chingar, e gritar, e denunciar; mas como, se a gente tem medo, se tem a certeza da impunidade? Medo porque somos assediadas por professores, por chefes, por motoristas de ônibus, por tantos lugares. Medo porque aprendemos que é "normal", que simplesmente é assim. 



Conheça mais do trabalho da Mari Fakih aqui: https://www.facebook.com/Fakih-Maa-280527268763501/

30 setembro 2015

Carta do Esquecimento

Aos filhos meus, que mesmo sem lembrar nunca esqueço,


Se te ofendo, filho meu, me desculpe, é que ando fora de mim. Minha cabeça, você sabe, já não anda bem e meus passos traiçoeiros caminham sobre pés fatigados. Você vem e me cuida desse jeito controlador, daí te ofendo e te boto pra fora. Mas a verdade é que quando você se enche e vai embora eu desarmo, desabo intensamente. 

Não pense que não sei o que se passa, eu sei, e por isso me angustia. Mas é me escapa tudo e birro e teimo e insisto.  O mal é que sei que não sei mais, e me vejo desaprender a tomar um gole d'agua, a escovar os dentes, a cuidar de mim. Eu quero - queria - estar livre novamente, mas não consigo, não posso mais.

Que sou eu, afinal, senão o rastro daquilo que está no retrato pendurado na parede? Quem sou esse eu que mal sabe onde está? 
As vezes na solidão choro, mas não quero que ninguém me veja, porque ainda quero parecer intensa. E se me maquio e me arrumo é porque não quero estar moribunda, embora esteja.
Me desculpa, meu filho, por de repente te dizer o que não merece. Me perdoa, minha filha, por te ofender pelo nada, por te prender a mim. 
Porque esse rastro que me resta não é aquela eu, mas por hora é só o que fica, até o momento que ele mesmo se perder e eu me for embora por inteira, antes mesmo de ir.

Por isso, sem lembrar bem porquê te agradeço e te peço perdão, ainda sabendo que serei bruta outra vez. 

04 agosto 2015

O Mundo dos Adultos


Eu era apenas uma criança passeando pelos adultos, nos tempos que as coisas me passavam despercebidas. 

Ainda dizem que por debaixo daqueles tacos lustrados havia uma lama tão espessa que grudava nos sapatos. 
Por isso hoje, quando vejo a casa ruir para virar condomínio de luxo, penso quantas mais na vizinhança eram assim, escondidas sob o cheiro de lavanda e cera, cujos  assoalhos eram lustrados semanalmente. 
As cortinas rendadas ajudavam a formar um degradê luminoso que vinha da cozinha e esfumaça até os quartos, escondidos na penumbra no fundo de um corredor.

Eu era apenas criança e brincava na sala quando os adultos resolviam me levar pra lá. Eles falavam trivialidades sob a luz da cozinha e fingiam gostar uns dos outros - e talvez até sem gostassem alguns. 
E os quartos que nunca entrei estavam abarrotados de mágoa, de mentiras, de fantasmas que se empilhavam sob os tapetes, debaixo das camas, dentro dos armários. 

Eu era apenas uma criança, que ficava na sala de fronte ao armário de brinquedos com os quais nunca se podia brincar. Eu era uma criança cujo nariz se irritava com o perfume da lavanda, com o odor de cera nos tacos, com a penumbra que levava aos quartos.  
Mas eu era apenas uma criança e precisava esperar que me pegassem pela mão e me levassem lá pra fora. E lá fora, havia mais e mais lama, talvez até mas espessa, mais suja, mais densa; porém era lama visível, não desapercebida sob os tacos de cera e perfume de lavanda. 

17 julho 2015

Você se tornou tão distante, é rastro, lembrança e quase parece passado; talvez seja. 

26 junho 2015

Fora dos Eixos

Nossa relação, veja bem, saiu dos eixos. Não lembro quando, como, mas lembro o porquê. Lembro que a gente discutia sobre a marca do café, sobre a cor das nossas camisetas. 
Mas a gente também foi muito feliz por um tempo, teve um filho, que cada um queria pôr numa escola, ensinar uma coisa. E esse filho é tão meigo, tão bom, tão nosso, que as vezes me faz olhar de novo pra você e pensar: será que a gente juntos ainda vai dar certo? Será que se a gente se juntar de novo nosso filho vai ser mais forte, mais feliz, mais brilhante?
Aí meu bem, aí eu lembro que o café de cevada que você gostava era ruim pro meu paladar, que meu jeito de bater um bolo não te agradava, que seu tempero pro almoço, que pra você estava uma delícia, me amargava a goela. 
Mas a gente era um bom casal, era o que todos diziam... e mesmo sabendo que juntos éramos promissores, que um dia fomos felizes, eu me acordo desse sonho todos os dias para lembrar porque a gente se separou; e fico sempre me martelando, me dizendo, pra não correr o risco de dar voltar contigo e novamente dar um passo atrás. 

10 junho 2015

Renata

Grafite por: Nina Pandolfo e Finók
Renata é reservada e bonita e sonhadora e não tem muitos amigos; por isso quando encontra alguém disposto a conversar, conversa. Conversa muito com o dono da loja de envelopes, com a atendente do mercadinho próximo a ela, com o cobrador do ônibus que costuma se o mesmo na hora que ela pega. 
E Renata sonha com o dia em que conversará sobre seu coração, sobre seus medos, dividirá seus sonhos. Afinal, ela é talentosa, mas guarda todo o seu talento escondido numa grande caixa de veludo no fundo de seu armário. Lá, também guarda papeis antigos, mensagens importantes, suspiros por amores que nunca viveu. 
Talvez se eu penteasse melhor esse cabelo, pensa consigo, talvez se eu tivesse alguns quilos a menos, se meus olhos azuis fossem mais azulados... talvez...
Mas na verdade, Renata re-vive num mundo de amores tão seus, que não consegue partilha-los, re-vê-se numa angústia tão solitária que não consegue enxergar a si, vive revivendo tão em silêncio que conversa comigo, contigo, conosco, com quem estiver disposto a conversar. 

15 maio 2015

Amanda cansou,


veja só, cansou de algo que já deveria ter cansado há tempos. Por que mesmo ela fora àquela festa de aniversário da amiga? Amiga dos amigos, que sequer fez questão de ligar no aniversário de Amanda? 
Por isso, naquele ano Amanda não foi ao aniversário dela, nem inventou desculpas nem nada, simplesmente não apareceu ou deu staisfações.
"Amanda, que modos", disseram quando ela contou isso numa rodada de cerveja, mas Amanda entre-sorriu e sem desconversar disse que tinha tentando deixar as cargas de lado e andar ao seu rumo. Disse estar decidia a deixar, deixar e deixar.
Por isso, devagar Amanda desistiu das pessoas que desistiram dela, e isso a fez ir mais longe. Afinal, Amanda é assim, quanto mais cansada está, mais caminha pra chegar lá.

08 abril 2015

Há não tanto tempo



Há algum tempo, que ironia, os tempos eram outros. Conversávamos, ainda que não fôssemos próximos. Mas o tempo fez com que as angústias se acumulassem, fez o ódio se alocar e as vozes se calarem. 

Me lembro do silêncio de meu avô, magro, alcoólatra, outrora falador e simpático.  Me lembro ainda que de tempos em tempos ele sorria, costumava, mas se perdeu, mesmo na sobriedade. Era um velho triste que entre um gole e outro se calava. Morreu mudo, e podia falar. 
O tempo, que ironia, lavou as lembranças e trouxe os traumas. A sujeira, abarrotada sobre o tapete transbordou. Aquela mágoa de repente era ódio. E aquele ódio novamente tornou-se silêncio, impondo-se e alojando-se nas almas de seus filhos. 

Às vezes, veja só, estou eu, cultivando também parte dessa mágoa, pensando em acertar a cara de alguém, arquitetando uma vingança imaginária. 
Bobagem, não vale.  
Não vale carregar, e me convenço para que não me consuma.  Não quero que me leve como os levou. Afinal, há algum tempo, não tanto tempo assim, conversávamos. Mas isso, isso foram outros tempos. 

4/2/2105

23 fevereiro 2015

Estar Só

Eu só quero ficar só, comer bobagens de frente à teve enquanto vejo uma programação fútil. 
Me deixa, porque estou bem, apenas preciso ouvir CPM 22 e reclamar de quão ruim é. Ou talvez eu precise comer um saco de Lays e depois me arrepender porque tem 20 milhões de calorias e me sinto gorda. 
Preciso descarregar meu mau humor, minhas angústias, tudo isso aí, mas em silêncio, só, pra não descarregar no mundo. 
E se hoje eu não lhe sorrio, não liga, não é contigo, se hoje não lhe falo, esqueça, eu só preciso ficar só.

20 fevereiro 2015

Desejo Noturno

Mariano trabalhou o dia todo, tomou a última cerveja da geladeira e viu TV até que os olhos pesassem. 
Dormiu no sofá e acordou de madrugada, melado e com torcicolo. 
Não se lembrava do rosto dela no sonho, apenas dos seus peitos gigantescos e do desejo tão intenso de matá-la que achou prudente não lembrar-se de quem era.  

29 janeiro 2015

O amor que se enrola

Como posso, ou devo dizer, pude eu, dizer que eu amo você? Você é assim tão complexo e tão distante. Um certo eu ausente, sempre foi. 
E eu? Veja só, eu sempre tentei me arrastar para você, e você sempre fingiu arrastado de mim, mas olhando pra mim, aproximado de mim.  
Como pôde você? Como pude eu te perseguir em silêncio? Se era eu quem plantava a semente de nós? Esse eu tão distante que sou eu, enrolada numa bolha de mentiras minhas que me levavam até mim mesma, que me deixaram fingir acreditar naquilo que você contava, que eu sabia que você mentia.
 
E eu, Como pude eu achar que amava você, se não amava sequer a mim mesma?

05 janeiro 2015

Altamira do Cerrado

Do sol, da areia, da água das dunas. Nelas surgem os olhos tão intensos que se escondem na aurora. 
É sob as dunas, antes do Sol Nascer que nasce Altamira, um mulher de pele bulgre, olhos castanhos, queixo fino e pele ardente. 
Dizem que Altamira flutua, tão intensa quanto o vento que molda as dunas nos meses de maio. 
É bela, tão bela que hipnotiza. Nas mesmas noites de maio que vem o vento, vem Altamira atrás de jovens apaixonados, hipnotizados por seu corpo que arde laranja.
É ela, Altamira, vista apenas antes da aurora. Canta, e sob a forma de pássaro torna-se mulher para o viajante que a chama. Pousa primeiro os ombros, depois nas costas, por fim enlouquece-o até que venha a hora. 
É ela, cujas mãos suaves percorrem vivas até a aurora. É ela, cujos viajantes procuram pelas histórias. É ela que quando os primeiros raios de sol despontam, encerra e esvai deixando inertes seus homens. Homens esses que sempre voltam para tentar encontrá-la novamente, mas ela não se repete, nunca vem.