07 fevereiro 2011

Palavras Partidas

Já faz muito tempo, é a única coisa de que tenho certeza. Eu era apenas um jornalista enfiado no meio da guerra. Nevava. O frio deixava os cafés cheios, principalmente de estrangeiros assustados com o mundo lá fora.
Eu entrei logo depois dela, as bochechas rosadas do vento gelado. Prontamente ofereci-me para descansar seu casaco e puxar-lhe a cadeira.
- Por que não se senta? - Ela falou num francês suave - Olhei-a num susto de desconcerto. Perguntou-me então se eu falava inglês e sorriu devagar quando percebeu que eu me sentava à mesa dela já dizendo olá. Conversamos escolhendo as palavras, seu sotaque era forte e seu inglês muito mais aguçado que o meu.
- De onde você é? - Ela baixou os olhos azuis enquanto eu deduzia sua ascendência.
- Brasileiro... - Me identifiquei murmurando em alemão antes que ela pudesse responder. Seus olhos subiram num leve alívio. Para minha surpresa ela tateou um português pesado. Disse-me, já mais à vontade, que estivera há pouco no Brasil e enquanto às vezes ela errava alguma conjugação ou artigo eu me fascinava por aquela língua minha que há meses não ouvia.
Tomamos um café gostoso, perdido ora no meu inglês medíocre e ora naquele português distraído, que mesmo sem ter o som de Brasil, tinha um jeito gostoso de pátria.
- Já é tarde, não será perigoso andar sozinha? - Ela agradeceu cordialmente minha preocupação, mas disse que não seria necessária minha companhia, apenas completou antes de sair:
- Em qual hotel a senhor é hospedada? - Combinamos às seis, no restaurante do meu hotel, enquanto eu ria levemente daquele jeito diferente de falar.
 
                                                                             ***

- Uma senhora telefonou. Não deixou nome, mas disse que o senhor tem seu número. - Foi o recado que recebi assim que voltei para o hotel. Corri para o telefone e do outro lado da linha atendeu uma mulher.
- ...Elle est partie. - Foi a última frase. Desliguei o telefone após um agradecimento triste. Ela partira... partira... e eu nem tivera tempo de me despedir. Ainda tentara me avisar, mas... uma pena.  Será que ela sentirá saudades minhas? Será que ela sabe qual sentido esta palavra tem? Será? Senti-me num livro do século XIX, remoendo os sentimentos de algo que nunca ocorrera. Acabei descendo sozinho e melancólico para o restaurante, respirando os ares de um exilado.
Recusei o cardápio e de imediato pedi uma Vodka com limão e açucar enquanto garçon olhava-me confuso.
- Com seu licença, senhor. - a voz sorriu com a seriedade alemã. Olhei-a bobo. - O atraso foi menos do que eu pensava. - Fiquei ainda mais estático quando ela se confundiu um pouco para formar a frase.
- Por favor... - Eu estava tão atrapalhado, demorei para mexer-me e confundi-me inclusive para ser gentil.
- Pensei que tinha partido... - Comentei tentando me justificar.
- Oui, je suis partie en retard au restaurant. - Respondeu ela confusa justificando seu atraso. Eu apenas ri sozinho de meu drama, perdido por não conseguir esquecer o jeito natural de falar nem quando a língua era outra. Sorri desconcertado e mudei rápido de assunto.
Nossa conversa seguiu ainda cuidadosa. Eu tentava pensar em mil elogios para suprir todo aquele mal entendido, entretanto não achava uma boa palavra em inglês ou francês para aquele momento. As que pensei, ora, todas em português e para ela não teriam sentido afetivo algum. Fiquei passeando pela minha cabeça, sem prestar muita atenção em nossa conversa; escutava inerte comentando algo de vez em quando, que nem sempre tinha conexão direta com o que falávamos.
Num leve surto ela pegou em minha mão, chegou mais perto do meu rosto.
- Quando voltar para Brasil entrega esta bilhete neste endereço, por favor. Importante é esta bilhete... - Discretamente ela passou o papel para meus dedos e eu o guardei cuidadosamente no bolso de dentro do paletó, enquanto delicado tentava desviar o assunto. Em função disso acabamos finalizando a conversa bastante tímidos.
Ela despediu-se, brincando com o inglês e francês, mas sem desmontar a face séria que a compunha ou falar um tchau à brasileira. Eu fiquei ainda sozinho bebendo minha vodka, enquanto brincava com a fumaça do cigarro.
- Com licença, senhor. - Pediu em inglês um homem bem vestido que identificou-se prontamente.
- Thomas Darrys, agente. - Aquele homem sabia tudo sobre mim e explicou-me que aquela senhora com a qual eu conversava tratava-se de uma espiã alemã. Pediu-me, educadamente, para que o procurasse caso tivesse qualquer informação a seu respeito. Entregou-me também um papel, o qual guardei cuidadosamente no bolso interno do paletó, enquanto agradecia o alerta.
Subi para o quarto em passos gringos, apático diante daquela louca e doce ousadia em português. Aqueles olhos azuis misturados aos meus sons, mesmo caricaturados pelo sotaque forte, saciavam-me de uma saudade que fiquei engolindo desde que cheguei para trabalhar. Senti falta, inclusive, daquele monte de verbos que eu mesmo nunca soube conjugar.
Passei a noite pensando nas línguas que ouvira, aquele inglês cortês, o francês delicado e o português pesado que tanto me fascinou. Elas embaralharam-se na minha cabeça formando um monte de palavras soltas e sem sentido .
Não tirei os olhos de ambos os papéis e deixei minha mente se perder entre as frases. Verifiquei, mais uma vez, o conteúdo daqueles bilhetes sem pátria e fiteio-os por segundos. Em sua igualdade amassei-os. Fiz uma bolinha tosca que saltou pela janela e mergulhou na neve lá embaixo. Uma pena, pensei por um instante enquanto alisava o queixo. Aquelas palavras iguais não mereciam meu respeito, mas aquele sotaque gostoso... Ah! Que sotaque...