O Som da sanfona percorrendo as casas, aquela música interminável que durava noites e noites e mais noites. Bem que minha avó contava, que ela mesma havia expulsado seu tio de sua casa depois de sua festa de casamento. Afinal, todos já tinham ido embora e ele permanecia ali, no centro da sala tocando, tocando e tocando.
Aqueles, aqueles eram outros tempos, tempos em que as crianças viviam soltas e livres nas ruas, os rios não estavam cobertos por concreto e a lama grudava nos calcanhares. Tempos em que as crianças apanhavam dos pais de vara de marmelo, a comida era escassa e falar alemão nas ruas era proibido.
Eu não sei bem como chegaram à São Caetano, mas a lenda conta que fugiram das fazendas de café, onde trabalhava-se do nascer do sol à aurora e que na venda devia-se mais do que as próprias calças. Os românticos contam que fugiram apenas porque junto ao cafezal a Polka era proibida, assim como era a sanfona, as danças e as lembranças da Europa. Sei apenas que pegaram o trem, e desapareceram na calada da noite.
Naquele tempo os imigrantes fugidos aglomeravam-se nas periferias de São Paulo, uns sobre os outros, escondidos e temendo o estalo de outra guerra na Europa. A guerra veio e a fome dizimou ainda mais os famintos. As já escassas cartas não chegaram mais e a sanfona tocou mais lenta e mais triste. Ninguém perdeu seu tempo contando os mortos, apenas acendia-se uma vela por dia, na esperança que houvesse alguém vivo. Tentava-se seguir em frente e mais uma vez não olhar para trás.
Mas um dia a guerra se foi, as tristezas viraram cicatrizes, nasceram os filhos os netos e bisnetos. O progresso, contudo, dizimou as lembranças dessa São Caetano de imigrantes, tornando quase irreconhecíveis essas histórias que mais parecem fragmentos. Fragmentos dos quais nada parece real além do som da sanfona que ainda hoje chora percorrendo noites e noites e mais noites numa lembrança vaga que nunca me pertenceu.