- Meus parabéns, já vão fazer três meses. - Ângela olhou apática diante do sorriso agora amarelado da médica. As pernas tremiam, o coração disparado. Esperara dias para abrir aquele exame, amedrontada pelo resultado praticamente certo.
Saiu devagar, caminhou sozinha olhando para o nada, a respiração pela boca. Algumas vezes parava para olhar um espelho, imaginando como estaria sem a roupa justa. Sentou-se em uma praça, bem em frente à igreja, a mão pousada na barriga, o braço flácido e largado. Sentada tirou o maço de cigarros da bolsa, acendeu um e fumou devagar, porém não tragou, ficou brincando tola com a fumaça na boca. Desatou em soluços, afogou-se num mar de lágrimas.
- Está tudo bem minha filha? - A voz era de um sacerdote que procurou assisti-la em sua tristeza.
- Não é justo... - balbuciou apenas - não é...
Ângela caminhava todas as manhãs atordoada, a mente distante do mundo real. Tomava café sem açúcar, fumava quando tinha vontade, chorava sempre, ria sem motivo.
As primeiras semanas passaram devagar, as seguintes voaram. Aos poucos Ângela passou a comer menos e dormir mais.
- Alô, César? É a Ângela - a voz feminina era natural e baixa, falava devagar.
- O quê? Meu? Mas... - Ele estava nervoso e confuso.
- Eu não vou ter esse filho! - foi dura.
- Ângela, por favor, vamos conversar, pense bem. - Falaram pouco, ela desligou fria depois de dizer o que queria, desde então sumiu.
A barriga cresceu normalmente, Ângela tomava comprimido para enjôo, lia sobre bebes, fumava depois do almoço. Estava cada vez mais fraca, mais quieta, mais apática. Tornou-se fria e dura com todos, mudou de casa, desligou o celular, desligou-se do mundo.
- César, aqui é a Ângela. - Ele mudou o tom de voz e surpreso, não sabia quais palavras escolher.
- E aí? Como você está? - foi apenas o que conseguiu pensar.
- Amanhã César, vai nascer amanhã. - Ele perdeu o tom, o tato, a tonalidade.
- Como assim? Em... em qual hospital? - Balbuciou.
- Fique tranquilo... - ela completou amável, enquanto deslizava a mão pela barriga grande. - vai dar tudo certo, você vai ver.
- Ângela, por favor, me fala pelo menos o hospital... - Mas Ângela estava decidida, somente pôs o telefone no gancho, sequer teve curiosidade de saber o que César ainda tinha para dizer. A conversa lhe causou sono. Deitou-se no sofá e simplesmente adormeceu.
Angêla vomitou, de manhã, e daquela vez foi diferente; mais forte, mais brusco. Teve medo, tomou um comprimido, chegou ao hospital pálida. Sentia contrações, e uma dor estranha e fina que preenchia cada músculo de seu corpo.
César procurou em todas as maternidades, louco de remorso por aquela pequena criancinha.
- É aqui mesmo, senhor. Ela deu entrada já faz algum tempo. - A atendente pediu para que ele aguardasse alguns instantes enquanto ela verificava os detalhes. César compulsivamente destruía o que ainda lhe sobrava das carnes dos dedos.
- Senhor, qual seu grau de parentesco com a criança?
- O pai! Eu sou o pai! - A recepcionista assustou-se com os olhos vidrados daquele homem, e ofereceu um copo d'água pra que ele se acalmasse. - Fique tranquilo. Assim que nascer viremos avisá-lo - Ela sorriu desconsertada e apontou um acento confortável ao homem.
César sentou-se, bebeu água, caminhou pelos corredores, mas a imagem das mães passando, dos bebês chorando, das enfermeiras... os dedos todos em carne viva.
- Queira me acompanhar senhor. - Pediu gentilmente a enfermeira. César balançou a cabeça em resposta e apenas seguiu-a em silêncio pelo corredor. A enfermeira não disse palavra alguma e aquele corredor imenso e branco provocou calafrios em ambos. César suspirou tenso, tomou fôlego.
- O que há com meu filho? - A enfermeira caminhou mais alguns passos, parou numa área mais reservada.
- Ouça-me, seu filho nasceu com sérias deficiências e não há muito o que possamos fazer por ele. Talvez ele viva apenas mais algumas horas. Eu sinto muito. - César não conseguiu encarar a enfermeira e foi seco.
- Eu quero ver.
Caminharam mais alguns metros pelo corredor pálido até a ala infantil, onde jazia ainda viva criança O bebê era raquítico, tinha o rosto completamente desfigurado, manchas vermelhas nas pernas, as mãozinhas tortas, as pernas deformadas, um pequeno monstro. César olhou para o teto, sentiu dor e um ódio que lhe rasgou por dentro. Sentiu também o coração paterno dilacerar, inerte diante daquele pequeno ser humano.
- E Ângela? - falou baixo.
- Por favor - A enfermeira apontou o caminho, e deixou-os a sós naquele momento difícil. Ângela estava estática na cama, olhava para a parede de costas para a porta.
- Eu falei César, era pra ficar tranquilo. - As palavras congelaram no ar. César foi na direção dela, levantou-lhe o queixo com o dedos e olhou-a fundo.
- Por que, Ângela? - Ela retornou o olhar fria, puxou o ar devagar.
- Por que, César, por quê? - Ângela ficou em silêncio, deu os ombros para César e retornou olhar à parede branca.
Ele enlouqueceu por segundos, pegou-a no pescoço e apertou até que seus dedos roídos sangrassem. Ângela sentia dor, faltava-lhe o ar, mas esboçou um lábio risonho. César não teve coragem, e suas mão relaxaram. Antes que alguém pudesse aparecer, ela puxou o ar com força, tossindo ofegante e assustada.
Ângela apenas virou-se novamente para a parede, permaneceu calada e seu olhar de perdeu-se mais uma vez, enquanto seu corpo seguia num contínuo movimento pra frente e para trás. César olhou-a ensandecido, chamou-a de louca ao pé do ouvido e deixou o quarto a passos largos, até sumindo pelos corredores.
Ângela, assim que o bebê deu-se morto, saiu de mãos e barriga vazias. Caminhou magra e de vestido largo pelas ruas, seguindo por qualquer direção. Uma das mãos alisou a barriga murcha, e sentido o equilíbrio perder-se, Ângela sentou-se num banco de praça, em frente a igreja. Os braços deixaram-se cair pelo corpo e buscaram na bolsa um cigarro. Ela tragou-o até o filtro mas os soluços não vieram, nem as lágrimas. Ângela jogou a butuca o mais longe que pode, em seguida espalhou os cigarros restantes no chão, brincando atônita com as formas que poderia criar com eles.
- Está tudo bem minha filha? - Perguntou um sacerdote que passava por perto e pareceu reconhecê-la. Ângela levantou os olhos, encarou-o por alguns instantes. Sorriu e riu e riu, até que lhe doessem os músculos do rosto.
- Não é justo... - respondeu - simplesmente não é.
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